Uma visão panorâmica surpreendente da guerra na Ucrânia
“Devo lutar ou devo filmar?” Não, isso não é uma versão do Clash. Foi o que Artem Ryzhykov se perguntou ao observar a Revolução Maidan em Kiev, em 2014 – um protesto que se estendeu por vários meses, enquanto os cidadãos saíam às ruas para derrubar o líder fantoche russo, Presidente Yanukovych, numa revolta que pressagiava a guerra que agora engolfou a Ucrânia. O protesto começou com uma onda de esperança e fervor e terminou num banho de sangue; O próprio Ryzhykov foi atingido por um par de balas (ouvimos os dois tiros enquanto ele filmava). “Minha câmera explodiu em pedaços”, diz ele. A Revolução Maidan conseguiu expulsar o presidente do cargo, mas a Rússia respondeu invadindo a Crimeia.
Quando a guerra atual começou, com Vladimir Putin lançando sua invasão em 24 de fevereiro de 2022, Ryzhykov tomou uma decisão: ele lutaria e ele iria filmar. Ele se tornou um soldado cineasta, mergulhado nas trincheiras, mas segurando implacavelmente sua câmera, esculpindo o registro histórico existencial do que aconteceu.
Assistindo “A Simple Soldier”, não podemos deixar de perguntar: Artem Ryzhykov, falando conosco por trás de sua câmera, é uma espécie de semi-narcisista semi-invisível, um documentarista de verdade ardente, mas fácil? Ou ele usa seu ponto de vista para assombrar e elevar as imagens? Acho que é o último, talvez com uma sugestão do primeiro. No entanto, as imagens em “A Simple Soldier” são de olhos abertos, angustiantes e indeléveis. Estamos bem aí, no meio do caos e do colapso nacional. O filme, co-dirigido por Ryzhykov e pelo documentarista colombiano-alemão Juan Camilo Cruz, colore tudo o que ouvimos, lemos e vimos sobre a guerra na Ucrânia da mesma forma que “20 Dias em Mariupol”, só que este captura uma fatia da guerra que é quase mais vividamente comum.
Conhecemos a esposa de Artem, Ira, logo depois que os dois se conheceram, quando ele a apresenta aos pais (a mãe sussurra em êxtase para a câmera que ela pensa estar desligada: “Onde você a encontrou?”). Oito anos depois, poucas semanas antes da invasão russa, 150.000 soldados russos se reúnem, e os dois estão dirigindo ao longo de uma estrada, as luzes na beira da estrada piscando. Artem diz que é como um filme, e Ina observa: “Está à beira do terror e do romance”. Isso é exatamente certo.
Pode parecer ingénuo dizer que há um “romance” na guerra, mas certamente não é errado dizer que a guerra pode aproximar as pessoas. E em “A Simple Soldier”, vemos a guerra aproximar os cidadãos da Ucrânia. O filme está de olho na Defesa Territorial, o que significa que os soldados em treinamento que estamos observando são civis. (“Aos sábados, usamos nossos uniformes e nos tornamos soldados.”) A elegibilidade para o recrutamento é entre 18 e 60 anos. Artem, de aparência muito eslava, com cabelos louros compridos, diz que em toda a sua vida nunca tocou em uma arma e que fez uma promessa a si mesmo: sua câmera seria sua arma. E assim será. (Mas a arma dele também estará.)
Os capítulos brutos do filme têm títulos como “Irpin, Dia 19” (Irpin é uma cidade no norte da Ucrânia). Existe a vida comum: um jogo de futebol. E há o horror comum: um cachorro morto, com sangue escorrendo da boca. Vemos partes inferiores do corpo carbonizadas e mutiladas em uma área repleta de minas terrestres. Um soldado reclama que Artem está colocando outros homens em perigo com sua câmera e diz para ele dar o fora.
“Khariv, dia 72.” Artem escolheu ser piloto de drone porque acha que eles podem vencer a guerra aérea e também porque o conjunto de habilidades exigidas rima com suas habilidades como diretor de fotografia. Ele está espionando do ar, ele está observando, ele está filmando. Uma mulher no banco de trás grita: “Pobre Khariv, que cidade linda era essa”. Olhamos para as semi-ruínas e tentamos imaginar a cidade de que ela fala. O pai de Artem morre porque estava doente e o hospital local foi bombardeado. É isso que esta guerra faz.
O comentário mais assustador em “Um Simples Soldado” pode ser o de uma mulher chamada Marta, que diz: “É um absurdo esta guerra. É um completo absurdo. Ainda não consigo entender que estamos no meio dela. Não sei por que fomos arrancados da vida comum. Nenhum de nós tem uma vida livre”. E esse é o resultado doloroso do filme. Estamos assistindo a um diretor de fotografia que virou soldado e virou cineasta, que na verdade é um cidadão registrando uma vida que foi incluída na totalidade da guerra. Perto do fim, ao volante do carro, Artem solta um grito. É como ouvir a angústia interior da Ucrânia, uma nação que foi arrancada da própria vida pela qual luta.
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