Como o agente secreto apela à memória coletiva brasileira
Não consigo lembrar o nome do homem, nem o ano em que nos conhecemos, mas lembro-me da conversa que tivemos. Foi no início de 2010, em um seminário para clientes que conduzi para meu antigo empregador, quando trabalhava com tecnologia; ele era um cliente, vindo do sul para a Nova Inglaterra. O mundo, concordamos enquanto comíamos biscoitos de chocolate no refeitório no almoço, enquanto todo mundo conversava um pouco sobre o clima, se torna um lugar muito melhor quando as pessoas viajam para lugares distantes ou estrangeiros, conhecem pessoas que de outra forma nunca conheceriam e se conectam com suas culturas e estilos de vida. Satisfeitos com esse acordo, apertamos as mãos, voltamos para a sala de aula e recomeçamos a monotonia corporativa.
Durante a última década e meia, tenho vasculhado meu cérebro para encontrar a frase perfeita para descrever aquela breve interação e, ao mesmo tempo, considerá-la adequadamente como um momento-chave dos meus quase 20 anos. Acontece que o cineasta e roteirista brasileiro Kleber Mendonça Filho sempre teve aquela frase enfiada no bolso como um lenço: “Você pode ter uma das melhores conversas da sua vida esperando um voo com alguém de Oklahoma, ou do sul da Itália, com quem você conversa por 16 minutos, e nunca mais verá essa pessoa”, Mendonça Filho me disse em uma conversa recente. “Essa é a lógica da vida.”
A lógica da vida. Parece matemático e científico aos ouvidos, mas é a “matéria” primordial do cinema de Mendonça Filho, concretizada em seu último filme, O Agente Secretoonde Armando (Wagner Moura), um homem que aparentemente é mais do que aparenta, acaba por ser mais e menos ao mesmo tempo: não o espião astuto e legal implícito no título, mas uma pessoa que tenta fugir de uma grave injustiça, embora esta descrição não não justiça à gravidade das circunstâncias de Armando. Ele é um pai que tenta se reconectar com seu filho, Fernando (Enzo Nunes), e um acadêmico que saiu de seu caminho e entrou em operações clandestinas. O filme fica tenso, até relaxar; é solto e arejado, até que se contrai rápida e cruelmente. Se alguém entrar lá esperando ver um filme estrangeiro de James Bond, ficará desapontado; quem conhece a estética de Mendonça Filho – ampla e sem pressa, mas ao mesmo tempo incansavelmente alerta – será recompensado.
Mesmo o público não iniciado que pratica a paciência pode abraçar O Agente Secreto como uma história do momento, dado o sinistro retrocesso em direção ao autoritarismo que as nações desenvolvidas em todo o mundo estão enfrentando atualmente. As peças estão no lugar para designar o filme como Contemporâneo e Importante, afinal, tendo sido limpo no Festival de Cannes deste ano; Moura ganhou o prêmio de Melhor Ator, e Mendonça Filho ganhou o de Melhor Diretor, o Prêmio FIPRESCI e o Prêmio Art House Cinema, enquanto o próprio filme recebeu uma indicação à Palma de Ouro. Esses sucessos vêm na esteira da iniciativa de Walter Salles Eu ainda estou aquitambém focado na turbulência política no Brasil de meados de 1900, ganhando o prêmio de Melhor Longa-Metragem Internacional no 97º Oscar. O momento tem um poder simbólico, e esse poder tem uma atração irresistível.
Mas afixar O Agente Secreto A abordagem da política internacional atual exige o reconhecimento de que a história do filme pertence menos ao presente do Brasil do que ao seu passado. Hoje, o país está sob administração do Partido dos Trabalhadores, de centro-esquerda, e do seu líder, Luiz Inácio Lula da Silva; em 1977, ano em que o filme se passa, os brasileiros sofreram com o governo do homem forte militar General Ernesto Geisel após sua ascensão ao poder e à presidência em 1974, profundamente envolvido na Ditadura militar de 21 anos.
Alguém pode estar inclinado a interpretar O Agente Secreto como um espelho diante do impacto da força bruta política de direita sobre os cidadãos; tal leitura não seria completamente errada. Mas Mendonça Filho, filho de um historiador, estrutura o filme primeiro como um lembrete e como uma superfície reflexiva num distante segundo lugar. “O Brasil tem uma coisa com memória”, explica Mendonça Filho. “Às vezes acho que o Brasil prefere não se lembrar das coisas. É quase como uma amnésia autoinfligida para evitar discutir seu passado desagradável.” Fazer um filme sobre o Brasil do final dos anos 1970 sem invocar a presença de Geisel é, pelo menos até certo ponto, impossível. Em O Agente SecretoGeisel efetivamente faz aparições por meio dos retratos emoldurados que apimentam as composições internas do filme; ele é menos um personagem e mais um elemento sinistro da mise-en-scène que lança uma sombra sobre essas fotos.
Talvez por Geisel estar representado no filme, Mendonça Filho não fale dele; em vez disso, ele menciona Dilma Rousseff, a 36ª presidente do Brasil, que serviu desde sua posse em 2011 até seu impeachment em 2016. “Ela mesma foi torturado na ditadura militar”, diz Mendonça Filho. “E quando (Jair) Bolsonaro chegar ao poder, discutir o (Comissão Nacional da Verdade), ele diz que só os cães procuram ossos.” Talvez essa amnésia social a que Mendonça Filho se refere não seja afinal autoinfligida; homens como Bolsonaro parecem se sair bem tentando eliminar por conta própria as atrocidades das lembranças dos brasileiros.
Inserido nesse contexto, O Agente Secreto funciona como uma espécie de exercício de memória, onde a vida civil sob a presidência de Geisel é vivenciada no terreno. Um filme de espionagem com o mesmo contexto seria uma piada, principalmente sob a direção de Mendonça Filho; ver Bacuaruseu esforço de codireção em 2020 com Juliano Dornelles, como prova. (Imagine John Carpenter Assalto à Delegacia 13mas situado no sertão e não no Centro-Sul.) Mas seus interesses em O Agente Secreto reside em observar a humanidade viva e bem, apesar da influência do autoritarismo.

A filosofia de Mendonça Filho sobre “a lógica da vida” desempenha um papel central na promoção desse interesse. “Existe um tipo de manual no cinema: você precisa manter a história em movimento”, diz ele. “Na verdade, acredito que mantenho minhas histórias em movimento o tempo todo. Só que adoro a ideia de dar a uma narrativa a lógica da vida.” Ele traz à tona Dona Sebastiana (Tânia Maria), a matriarca que preside o condomínio onde Armando se muda ao lado de outros dissidentes políticos que fogem da perseguição e da morte iminente; se O Agente Secreto não é o tipo de imagem em que as pessoas se reúnem para falar sobre os personagens “favoritos dos fãs”, ela se tornou uma, mesmo assim, provavelmente devido à grosseria casual e ao ar de mistério que cobrem seu permanente senso de compaixão. “Tornou-se um ponto de discussão muito popular”, diz Mendonça Filho, rindo. “As pessoas estão completamente obcecadas. Na verdade, elas me escrevem nas redes sociais e têm memes dizendo: ‘Por favor, me diga o que Sebastiana fez na Itália? Preciso saber o que ela fez na Itália. É inaceitável que esta mulher de 77 anos diga: ‘Vou levar isso para o túmulo, mas fiz três coisas na Itália'”.
Em outro filme, Sebastiana, como personagem, nunca teria a liberdade de mencionar de passagem sua possivelmente sinistra, mas quase certamente emocionantes travessuras italianas; em outro filme ainda, poderemos descobrir quais são as três coisas em um cartão de título pós-roteiro. O carinho e a atenção que Mendonça Filho demonstra ao escrever pequenos momentos para que a atuação de Maria brilhe é fundamental em sua produção cinematográfica. Em alguns pontos da narrativa, há uma sensação, que emana de trás da câmera, de que Mendonça Filho deseja se afastar de Armando – ou, aliás, dos protagonistas de qualquer um de seus outros filmes – e seguir, por exemplo, Dona Sebastiana, ou Claudia (Hermila Guedes), vizinha e eventual amante de Armando, ou Hans (o falecido Udo Kier), interpretando um sobrevivente do Holocausto confundido, às vezes aparentemente intencionalmente, como um fugitivo nazista pelo corrupto chefe de polícia Euclides. (Robério Diógenes). A lógica da vida permite tais digressões, e tais digressões ocorrem em miniatura, em O Agente Secreto: na forma como Sebastiana corteja Armando e seus companheiros refugiados, ou Hans dança na rua durante uma festa de carnaval.
A lógica da vida é inconstante, no entanto. Em setembro, Líderes empresariais brasileiros implorou à Academia Brasileira de Cinema que indicasse o filme de Marianna Brennand Manas como representante do país na 98ª edição do Oscar O Agente Secreto. O antagonista de Mendonça Filho aqui é um antigo executivo da Eletrobas que guarda rancor de Armando; não é preciso ler nas entrelinhas para intuir a motivação por trás do de curta duração campanha para Manasum drama investido na exploração sexual infantil nas comunidades da floresta amazônica. Para Mendonça Filho, isso é uma repetição da história. Sabotagem política anulou seu filme de 2016 Aquário de ser inscrito como candidato ao 89º Oscar, embora reconheça que existe um enorme abismo entre o governo que interfere neste processo e uma conspiração de empresários; e admitir também que há um abismo entre o Brasil de 2016 e o Brasil de 2025.
“Acho que, dados todos os obstáculos e todos os desafios que o governo Lula enfrenta depois de quatro anos em que a extrema direita basicamente trabalhou com uma bola de demolição todos os dias, acho que estamos em muito boa forma”, diz Mendonça Filho. “Toda essa ideia de estar em uma sociedade democrática está de volta.” Isto, talvez, explique por que O Agente Secreto está indo bem nas bilheterias brasileiras, apesar do foco no passado – aquele alérgeno à sensibilidade dos brasileiros. (Não por coincidência, Eu ainda estou aqui teve um bom desempenho no mercado interno também, como o filme brasileiro de maior bilheteria desde a pandemia de COVID-19.) “Minha experiência como brasileiro é que o Brasil prefere evitar o passado”, acrescenta Mendonça Filho. “É claro que, como cineasta, sou exatamente o oposto. Acho que o passado é uma fonte inesgotável de compreensão e também de histórias.” E nisso também está a lógica da vida.
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